Dificuldades levam ao trabalho infantil

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Psicopedagoga fala sobre os obstáculos ao bom desenvolvimento de crianças e jovens

Claudia Maria Pereira Viaboni é pedagoga e psicopedagoga. Atualmente, Claudia dá aulas em uma escola municipal no bairro do Heliópolis, mantém consultório onde atende crianças com dificuldade de aprendizagem e é voluntária em uma ONG que trabalha com pessoas em situação de rua.

O que leva uma criança a trabalhar?
Cláudia – São as necessidades. Porque eles vivem em uma situação abaixo da linha da pobreza, muitos deles não tem nada. Nós temos alunos que têm vontade de comer um frango assado e ficam meses com essa vontade. Então eles saem para vender bala. A máquina toda, que muita gente ganha dinheiro em cima disso, acaba usando e até para o tráfico, para outras coisas.

Você acha que é uma iniciativa deles, da família ou outros?
Eu acho que há várias linhas. Há crianças que vão para o trabalho porque sentem necessidade, sentem desejo de ter outras coisas. Mas eu conheci uma família que alugava os filhos para pedir. Vinham pessoas de outros lugares, pegavam essas crianças e saíam para rua pedir ou então vender bala. Teve um menino que morava em situação de rua que contava que estar em casa era pior que estar na rua. Então ele sofria abusos dentro de casa, abuso emocional e físico e aí, se ele não chegasse com dinheiro em casa, ele apanhava. É uma realidade muito complicada.

E é sempre o trabalho informal que eles procuram? Mesmo os de 16?
Eles são de uma classe que não consegue vislumbrar a gente, com trabalho formal. É também uma questão existencial. Para eles não existe esse mundo. E então perguntamos: “Mas eles não veem as informações na TV? Eles não veem a informação na escola? Mas a coisa não faz sentido. Enquanto não fizer sentido, não tem existência e eles não têm como mudar de situação, de buscar algo diferente. É uma realidade inexistente. Uma vez um aluno falou para mim que estava no tráfico e ía me contando. Eu perguntei se ele não tinha medo e ele disse assim: “Professora, quem tem medo não nasce”. Então, para ele, só existia aquilo. Para as pessoas da comunidade carente que estão nessa situação subhumana não existe algo a mais, é só aquilo que eles vislumbram. Acredito que nosso trabalho também é tirá-los dalí, transportar para um outro mundo, fazer com que eles participem e conheçam outras coisas para que eles possam ter acesso.

Eles estão trocando o trabalho pela escola?
Nós temos outro problema dentro da escola. Existem anéis de necessidade. Enquanto as necessidades básicas não são supridas, estudiosos dizem, que se a comida, a segurança, se as coisas básicas, a moradia não estão sendo supridas, o ser humano tem dificuldade de ter outras necessidades, de ir buscar outras necessidades. E é essa a situação deles, a comida que não tem, a segurança que não tem. Eles vivem dentro de um lugar onde de repente o barraco é invadido de noite, tanto por policiais quanto por moradores, assaltantes, e colocam o fuzil no rostinho deles. Eles já têm até a frase pronta: “Não, eu sou criança, não sei de nada”. Então, o estudo é uma preocupação que vai além das necessidades básicas que seriam a sobrevivência, a segurança, a moradia. Só aí que um ser humano vai se preocupar com o estudo, com o sonho. Porque o estudo está muito ligado ao sonho, esses estudiosos que falam dos anéis de necessidade dizem que o sonho é o último. Depois que todas essas necessidades estão supridas que ele consegue sonhar com algo diferente.

As crianças estão adquirindo responsabilidades cada vez mais cedo?
Depende de onde vivem. Há crianças que cuidam dos irmãos desde os seis ou sete anos. Isso era uma realidade das nossas mães, dos nossos avós, de quem hoje tem 70 anos. Eu vejo que naquela época tinha isso também, o que não deixa de ser um abuso da infância, e hoje também existe. Há um outro movimento que eu percebo que é das crianças que não têm essa responsabilidade, porque a mãe está em casa, de ociosidade total. Existem os dois opostos. Não é suprida a necessidade básica de ser humano, eles ficam em uma passividade intensa à beira de uma depressão ou mesmo têm de assumir coisas que não era da alçada deles. Muitos deles falam como se fosse obrigação: “Eu falto na escola para cuidar do meu irmão”.

Essas responsabilidades que eles assumem acabam com a infância?
Eu acredito que seja um dificultador. Os que que são ociosos também não aproveitam, pois ficam a esmo. Eles não têm acesso a algo diferente, mesmo dentro das comunidades que possuem muitas ONGs. Eles não são assistidos, ou ficam na rua com o tráfico, ou ficam dentro de casa trancados. Mesmo quem tem a disponibilidade de viver esse tempo, que não tem que cuidar dos irmãos, muitas vezes não têm o que fazer, ficam trancados em um quarto, porque a casa toda é um quarto. E, às vezes, quando têm, não conseguem perceber a existência das ONGs, não vão procurar mesmo que esteja ao lado da casa deles.

O que acaba atrapalhando a infância além do trabalho?
A questão do mundo virtual atrapalha bastante o desenvolvimento. Embora algumas habilidades sejam desenvolvidas, a habilidade corporal, a questão de causa e efeito não. Antes, quando brincávamos na rua de carrinho de rolemã, machucávamos o pé, ficávamos uma ou duas semanas com ele aberto. Hoje eles se jogam de cima de prédios, caem dentro da lava, não tem causa e efeito, daqui a pouco eles vivem de novo. Ns percebemos,na escola e no consultório,várias crianças com dificuldade de aprendizado e eu acho que é por essa falta de vivência corporal, por essa falta de brincar, mas de maneira que eles construam. No videogame já tem pré-estabelecido o que eles vão fazer, o máximo que eles fazem é decidir o que vão fazer primeiro: “Vou pegar a bandeirinha ou a moeda?”. Mesmo nesses mundos abertos de videogame, não há muita construção, ela já está pré-estabelecida, eles só fazem um papel coadjuvante. Isso atrapalha e muito o desenvolvimento. Fora a questão das famílias, as mães não têm tempo mais para os filhos. O videogame e a televisão são a babá perfeita, porque eles ficam hipnotizados sem se machucar. Esse tempo, essa vivência de coisas rápidas, descartáveis, esses encontros que não existem mais… As pessoas não têm mais o encontro humano significativo que proporcione uma vivência humana de qualidade. Existe também a questão dos rituais, hoje não há mais rituais nas casas, as pessoas comem em frente à televisão, então esse ritual de ir à mesa, de partilhar a vida, os rituais de passagem… Hoje as coisas se atropelam e se vive, na verdade, sobrevive. Não existe mais o período de vivência, de fraternidade, de conversa, de partilha e isso atrapalha no desenvolvimento humano.

Há como conciliar o trabalho, o estudo e esse desenvolvimento?
Acredito que sim, em uma idade maior essa questão é interessante, a vivência de trabalho, mas que seja uma vivência controlada dentro de uma estrutura interessante. Desde que eles estejam em um ambiente profissional, onde eles tenham referências positivas e que não demande uma sobrecarga. Porque se ele tiver que dar conta de tudo é muita coisa. Antigamente eles iam para o inglês, para a informática mais tarde. Esse tempo era preservado, hoje eles estão nessa sobrecarga desde cedo.

É responsabilidade de quem esta inserção precoce do jovem no trabalho?
Para mim é responsabilidade do Estado, por exemplo, eles mudaram até na Constituição, antigamente a escolaridade, a educação era responsabilidade do Estado e da família, hoje a responsabilidade é da família e do Estado. É um jogo de palavras que tem uma ideologia por trás, de lavar as mãos um pouco. Mas eu acredito que seja obrigação do Estado, mesmo a formação das famílias. Hoje as famílias são formadas ao acaso, ao acidente, então precisaria ter toda uma educação para a vida, uma educação para a família, uma educação para a sociedade desde muito cedo e não existe programa nenhum. O programa de sexualidade que existe é o da camisinha, é ensinar sexo protegido. Não sei até que ponto isso é sexo protegido. Então não existe a preocupação com a sexualidade humana que demanda a família, que demanda o ser humano, que demanda a formação da pessoa. Porque a sexualidade é inerente ao conceito de personalidade da pessoa, então não existe essa preocupação que devia ser do Estado. Tem muita gente que critica o bolsa escola, o bolsa família, mas eu acho que essa situação emergencial é importante, porque tem gente que come só o que a bolsa família dá. Ela é importante e precisaria ser dada para use os políticos ganhassem menos e dessem mais, seria mais saudável para a população. Mas precisa ter também a necessidade dessa formação humana com as crianças, com os servidores, com os professores, com toda a sociedade, porque as pessoas se acomodam a viver nessa situação, pois sobrevivem, e não buscam algo diferente para viver. É necessário fazer um programa sério de formação humana, junto com essas rendas para que eles possam ter uma sobrevida, que busque capacitá-los para uma vida melhor. Existe o dinheiro, nós pagamos muitos impostos, só que existe o desvio. Então precisaria usar esse dinheiro de forma solta, para que fizesse essa capacitação com a sociedade toda, para que as pessoas tivessem essa consciência do existir humano, do coexistir.

Há alguma coisa que você queira acrescentar?
Essa questão da criança, do brincar é uma preocupação muito grande para mim, essa perda da infância. Eles não brincam mais. Dentro das escolas, dentro dos espaços que eles deviam ser protegidos, eles não são, A criança do berçário ouve: “você já não é bebê, bebê é aquele do berçário menor”. Meu deus, se ela tem um ano, um ano e meio ela é bebê ainda. Ela ouve: “Você tem que dar o exemplo, você já é grande”. A criança de primeira à quarta série também: “Você já não é pequenininho mais”, a criança tem seis ou sete anos, não é pequeno? Não é criança? Isso atrapalha muito no desenvolvimento. Eles vivem com essa carga “não é criança”. Então quando eles vão ser criança? Isso em espaços que deveriam ser protegidos. É a questão da abstração. Eu vejo muitos cobrando uma abstração de criança de dez anos, uma linguagem abstrata. Isso ainda está sendo concluido, está sendo formado, como você quer que a criança te responda. Existe muito esse roubo do que é ser criança, de toda a questão infantil nos espaços que deviam ser protegidos. Nos lugares onde ele deveria ser protegido, precisamos ter um olhar melhor para a criança, o adolescente. Você olha um menino de treze anos e fala que é um homem, mas não percebe que é um adolescente. E o adolescente tem suas demandas, suas particularidades. A sociedade tem que pensar a questão do trabalho infantil como algo que não dá para aceitar. Mas existem outras violências que estão mascaradas, mas que são nocivas para o desenvolvimento humano.

Por Fernanda Drumond

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