“Recomeço” é a privatização da saúde
Professor da Universidade Federal de São Paulo, Fernando Kinker é Terapeuta Ocupacional e atuou no início da década de 1990 na implantação da rede de serviços comunitários de saúde mental na cidade de Santos. Recentemente, como consultor do Ministério da Saúde, apoiou o processo de construção de casas para acolher pessoas abandonadas em hospitais psiquiátricos.
NJSR – Qual é a sua opinião sobre a internação para tratamento de pessoas que sofrem de transtornos psíquicos?
FK – As internações psiquiátricas foram durante muito tempo a única oferta de atendimento e fizeram com que muitas pessoas se tornassem moradoras de hospitais psiquiátricos, sendo abandonadas pelas famílias. As pessoas com sofrimento psíquico grave e suas famílias precisam de apoio contínuo, voltado para as necessidades do dia a dia, sempre visando a participação deles na sociedade. Pode ser oferecido por serviços comunitários que trabalham em equipes formadas por profissionais diversos, que devem desenvolver propostas de atendimento, construindo um vínculo de confiança. Devem também conhecer a vida dessas pessoas, onde moram, por onde circulam, e fazer um trabalho de apoio à inserção social. Esses serviços, chamados de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), também podem acolher as pessoas quando elas não estão bem para ficar em casa. Isto é muito melhor que a internação, porque trabalha com as causas do problema, oferecendo um apoio efetivo às necessidades de cada um. A internação simplesmente não resolve, ela apenas significa que não se está dando o apoio cotidiano que a pessoa que sofre e sua família necessitam.
Qual é sua opinião sobre a política de internação compulsória para usuários de crack?
Além de negar o direito à liberdade, ela tem demonstrado que não resolve, pois muitas pesquisas indicam que a maioria das pessoas que saem dessas internações logo volta às drogas. Se a pessoa não estiver disposta, nenhuma mudança ocorrerá. Com uma rede de apoio, como o CAPS, casas de recolhimento transitório e consultórios de rua, fica mais fácil para o dependente químico encontrar sentido em modificar sua relação com as drogas. A política de internação compulsória serve apenas como uma forma de desaparecer com o que incomoda a sociedade.
O que o senhor pensa sobre o “Programa Recomeço”?
Ao invés de criar uma rede de serviços comunitários que possa estar perto dos dependentes, a proposta os afasta da sociedade e financia com recursos públicos clínicas de caráter duvidoso, que na maioria das vezes forçam os sujeitos a se submeterem a determinada religião, e a passarem por situações de constrangimento. O Conselho Federal de Psicologia fez uma avaliação das comunidades terapêuticas no Brasil e comprovou que na maioria ocorre violência física e psicológica. Esse tipo de tratamento não cuida das pessoas, não resolve o problema do uso de drogas, e representa sim uma forma de privatização da saúde pública. O governo poderia apoiar os municípios com recursos para a implantação de CAPS e outros serviços, contribuindo para a melhoria da condição de vida. Se os usuários recebessem R$ 1350,00 para gastar com suas despesas, mudariam sua relação com as drogas, pois a miséria contribui para o uso prejudicial.