Poesia e pintura na vida são remana

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Junho de 2011

Em muros ou papéis, mulheres da comunidade retratam idéias, sentimentos e saudades

Ruan de Sousa Gabriel

Sueli, Kátia e Amanda têm mais em comum do que serem moradoras da São Remo: o gosto por se expressar por meio da arte.

Na adolescência, dedicavam-se a temas românticos. Hoje, continuam criando, mas sabem das dificuldades de se viver da arte, atividade pouco valorizada no país.

São Remo em versos

Para Kátia Soraia dos Santos, a inspiração para escrever vem geralmente à noite, na hora de dormir ou até durante o sono. Mas conta que já chegou a ficar inspirada e ter vontade de escrever em uma reunião do trabalho.

Kátia começou escrevendo poemas românticos na adolescência. Desde então, já escreveu raps e poemas de protesto, mas um de seus temas mais recorrentes é a própria comunidade.

Moradora da São Remo desde os 5 anos de idade, ela fala, em alguns de seus textos, de suas lembranças e das mudanças pelas quais a comunidade passou.

Na São Remo onde Kátia cresceu havia mais verde e as crianças tinham mais espaços para brincar. “Agora elas têm que disputar o espaço com os carros” afirma.

Hoje,  já não produz tanto quanto na adolescência, já que o trabalho e os afazeres domésticos consomem boa parte do seu tempo.

Kátia não gosta de digitar, escreve seus poemas a mão e os mostra apenas a alguns amigos. Nunca ambicionou tê-los “como fonte de renda” e reconhece que nem todos sabem apreciar a poesia.

A arte que dá cor à vida

Sueli da Silva escreveu seus primeiros poemas em um diário aos 10 anos de idade. Solitária quando criança, sempre teve diários, que acabavam se transformando em cadernos de poesia. A partir dos 12, começou a guardar as pinturas que fazia e chegou a grafitar quando adolescente.

Hoje, aos 27 anos, Sueli afirma que a arte é a maneira que encontrou para se expressar. “Eu costumo falar que eu choro pelo lápis”.

Na adolescência, Sueli participava de saraus. Nas festas que aconteciam na São Remo, sempre pegava o microfone para recitar alguns de seus poemas.

“Era um escoteiro mirim/ viu a guerra acontecer pela televisão/ ficou com medo de crescer…/ e morreu na solidão”. Sueli está amadurecendo a ideia de compilar esta e outras poesias em um livro. Mas reconhece o pouco valor dado à arte e a falta de apoio aos artistas no Brasil: “Mesmo que a pessoa seja ótima nisso, se ela não tem nenhum apoio, acaba não reconhecendo o seu próprio valor”.

Conscientização pela arte

“Minha primeira tela foi a parede da minha casa”, conta Amanda Carolina Martins. Ainda criança começou a pintar, trazia giz da escola e desenhava nas paredes. Mais tarde, começou a grafitar. Chegou a montar um estúdio de tatuagem, que abandonou quando ficou grávida.

Na adolescência, participava de um grupo de rap: Malês MC’s, que tinha como símbolo Zumbi dos Palmares. Amanda compunha músicas de protesto, com temáticas sociais que visavam conscientizar os ouvintes, principalmente as mulheres. “Elas não sabem o potencial que têm.” diz.

Na época, se identificava com o movimento anarquista: distribuía panfletos, participava de protestos e não acreditava na representação política. Foi o marido quem a convenceu a tirar um título de eleitor, há cerca de dois anos: “Meu esposo falou que eu precisava ser uma cidadã”.

Hoje, aos 25 anos, não se lembra mais das letras de suas músicas. Casada e mãe de dois filhos, não pinta mais com tanta fre­quên­cia: “Agora, com o dinheiro de comprar spray, eu compro fralda”. Mas ainda acredita no poder que a arte tem para conscientizar as pessoas: “A arte é uma linguagem, ela atinge todo mundo”.

Veja alguma das poesias das são remanas:

Kátia Soraia dos Santos

Olha a menina na rua que
nada tem a pensar!

Olha o moço da venda
gritando pro pão vir buscar!

Olha as ruas de barro
que agora quase não há!

Olha as mulheres com latas
d’água que longe iam buscar!

Olha aqueles montes de mato
que hoje mais não há!

As casas que antes eram poucas,
hoje não dá pra contar!

Olha as crianças soltas na rua
livres e felizes a brincar!

Olha o tempo que passa
que antes não se via passar!

Sueli da Silva
O trabalhador

Paulo sempre fôra um cara pacato, sensato, paciente, trabalhador, enfim todos esses adjetivos que a sociedade emprega as pessoas “boas”, ou seja, era um cara conformado. Passava a maior parte do tempo em uma repartição pública, tinha um emprego burocrático e estava acostumado à solidão. Comia pouco, saía pouco, não namorava, pagava o aluguel com antecedência.

Não reclmava nunca, sobre nada. Até mesmo certa vez em que a pensão passou por um apagão de energia que levou toda uma semana, só aconteceu na pensão, a rua estava bem iluminada, Paulo não reclamou.

E uma vez que precisou fazer cerão no trabalho, isso porque os outros funcionários decidiram tirar falta coletiva a passeio na véspera de um tal feriado, não o convidaram e nem se quer foi comunicado, é que podia melar! Paulo era muito trabalhador, não reclamou.

Foi em uma estranha manhã, Paulo acordou mal humorado, estava com uma baita dor de dente, mas não podia reclamar, o dentista o alertara mas ele não ouviu. Agora com uma inflamação, tomando remédio paliativo tinha que esperar.

E o cachorro do vizinho?! O inquilino do andar de baixo tinha um cão que defecara todo o corredor deixando o ar irrespirável, mas Paulo não podia reclamar, achou antiético, quando o moço trouxe o animal ainda filhote, ele foi o único a apoiar.

E o inquilino do andar de cima?! Todo dia tem festa? Pô! E nem convida! Se ao menos essa festa tivesse uma pausa…

Esse é o Paulo, que com dor de dente vai ao trabalho, sem dormir, e que não quer mais fazer cerão.

Então um dia Paulo resolveu, voltou pra casa mais cedo. desviou das fezes, matou o cachorro e jogou-o janela adentro no quarto do vizinho barulhento, e jura que não foi ele.

Este mês Paulo não pagou o aluguel e viajou. Foi à praia tomar um bronzeado, arrancou aquele maldito dente e agora namora.

Outro dia Paulo me contou que só lamenta pelo cachorro.

João de barro
 

Entre luas
estrela
cimento

descubro um pedreiro
sem forma
sem corpo
pura alma

a alma é um pássaro
que admiro pela janela
através da sociedade
passável em que poucos passam

então pergunto o por que
de tanto relógio alheio
que só tortura
já tão fora do tempo.
(s/ titulo)
Cansaço verde
agonizar em plena vida

ferrugem no cérebro de ouro
vinho caro na encruzilhada
saciando moscas

vida e morte
perpétua estrada

 

(s/ titulo)
Ausência de amigos
um desvareio.
a vida sem flores
amores em afago. doce amargo é caminhar só
é chão de pedregulhos.
dia sem sol, de chuvas e nuvens. ter de fato um amigo é ter
alegria na tristeza. é amor real sem promessas
sem fronteiras

(s/ titulo)
A diferença
ficar e partir
estar e não estar mais

ausência

deixar o perfume
deixar as flores
abandonar o belo
entrar no vazio
deixar as roupas
deixar a terra

amor etéreo
natureza ingrata
nenhuma chama perdura.

Humanidade

Amor…
…sexo
primeiro o sentimento
espirito,alma

carne?!
eis o que somos
consequências fatos
“entre linhas”;
(s/titulo)

Sanidade
aguá límpida

cofusão
águas turvas

vida…
o Rio…

(s/titulo)

A “Sociedade” impõe
a massa obedece

o menino cresce
vai viver de quê
o luizinho

Levanta que já é tarde
e você vai pro trabalho
seu vagabundo

larga esse livro estrupicio
que já é tarde e vê se vai
da um jeito na vida

a criança ta chorando
ta com fome seu miseravel
que adinata trabalha
mas é homem froxo
luiz

acorda benzinho
é madrugada mais os manos
tá chamando

vai luizão
parece que essa é da boa

(s/titulo)

Era um escoteiro mirim
viu a guerra acontecer pela televisão
ficou com medo de crescer…
e morreu na solidão

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