Importância da norma culta é relativa
Autora do capítulo polêmico de livro didático discute preconceito linguístico no Brasil. Confira a entrevista na íntegra.
Sofia FrancoHeloísa Ramos é autora do livro “Por uma vida melhor”, usado no EJA e alvo de críticas da mídia por tratar de variantes lingüísticas no capitulo de língua portuguesa. Formada em letras pela PUC -Campinas e professora aposentada da rede estadual, hoje trabalha com consultoria e formação de professores. Em entrevista ao NJSR ela discute o tema preconceito lingüístico.
NJSR: Qual seu objetivo ao inserir este tema no livro?
HR: Esse livro não é só meu. Não sou a única autora, somos três autores: Claudio Bazzoni, Mirella Cleto e eu. Nós elaboramos quatro volumes. Cada volume não é totalmente de língua portuguesa, é um volume pra EJA, onde o livro tem que ser condensado, ter um conteúdo que o professor seja capaz de desenvolver em um semestre, porque o curso é semestral. O livro tem outras disciplinas: Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Ciências humanas, Ciências Naturais, Matemática, Arte e Literatura. O aluno só tem este volume no semestre. Nós elaboramos os quatro capítulos de Língua Portuguesa.
É um conteúdo de Língua Portuguesa de todos os anos falar de variações lingüísticas. O que pode causar estranheza é que as pessoas acreditam que conteúdo de Língua Portuguesa seja substantivo, adjetivo, verbo, pronome… Só conteúdos da gramática normativa. Os leigos não se deram conta das mudanças pelas quais passou o ensino de Língua Portuguesa no Brasil. Não há nenhuma intenção além de trabalhar um conteúdo que é muito importante para EJA. Porque o estudante que deixou a escola há muito tempo e está retornando, mais do que ninguém, sabe o quanto é difícil se apropriar da norma culta, sendo que ele está fora da escola há tanto tempo, não estava em contato com a linguagem dos livros jornais. É muito distante a linguagem que ele traz consigo da linguagem que ele tem que aprender na escola para poder ter acesso ao mercado de trabalho, bens culturais, conhecimento cientifico. Por traz de qualquer didática tem uma intenção do professor. É um capitulo introdutório, como se você estivesse recepcionando o aluno: “Você fala assim, mas não vai continuar falando assim em determinadas situações, nós vamos te ensinar a norma culta.”
NJSR: Acredita que existe preconceito lingüístico no Brasil?
HR: Existe. Não se fala em voz alta. O preconceito racial e outros que estão sendo mais discutidos se percebe mais rapidamente. O lingüístico é velado, é quando você julga o valor de alguém pela distância que sua linguagem tem em relação à norma culta. Existe uma forma de excluir pessoas ou dar valor a uma pessoa, atribuindo adjetivos (incompetente, ignorante), em função da linguagem que ela usa. Sabendo disso a escola precisa trabalhar a norma culta pra que todos tenham possibilidade de transitar em todos os meios sociais.
NJSR: A escola é um meio de combater este preconceito?
HR: A escola tem que fornecer ferramentas pra que todos tenham acesso aos bens culturais, ao conhecimento, a linguagem dita culta. E muito é a conscientização que este capítulo está permitindo. Compreendendo que existe o preconceito, que existem as variantes lingüísticas que a variedade culta é importante as pessoas dominarem, a possibilidade de você se esforçar para ter a norma culta vai ser maior, então a escola tem obrigação de oferecer ferramentas. Agora, o preconceito tem que ser discutido socialmente e vir à tona como esta polêmica ajudou a vir.
NJSR: Qual a importância da norma culta?
HR: A importância é relativa. Hoje é a linguagem por meio da qual se tem acesso ao conhecimento aos bens culturais, a ciência, ao mercado de trabalho, toda a comunicação de jornais e revistas, os documentos, tudo que você precisa para agir socialmente está em norma culta. Quando você escreve, precisa defender uma idéia, faz um currículo, um relatório, participa de um debate… Agora, ela se tornou a mais importante porque é da classe dominante. Com os anos a língua vai mudando de acordo com o grupo social que a usa, tem uma modificação ao longo dos séculos, inclusive incorporação de novas palavras no dicionário. Expressões que eram consideradas vulgares se forem muito usadas podem ser incorporadas pela norma culta.
NJSR: E a variante da internet, onde ela se encaixa?
HR: Ela é uma linguagem da internet, adequada para o meio em que está e a finalidade que ela tem. Rápida, não tem espaço pra longos ensaios. Na mídia em que está, pro espaço que ela tem, sua finalidade e para as pessoas que fazem uso daquele local, ela tem que ser assim e chegou a ficar assim pra atender seus propósitos. Isso não quer dizer que se comunicando com as pessoas por esta forma abreviada você não seja capaz de escrever um ensaio em norma culta. Isso só vai te acrescentar possibilidades de comunicação em diferentes meios, com diferentes interlocutores. Existem pessoas que acham que os jovens escreverem por MSN atrapalha a utilizar a ortografia de acordo com os padrões. Não. Ai entra o ensino, eles têm que aprender a adequação da linguagem, saber que não pode transferir esta linguagem para uma prova por exemplo. A questão é a adequação ao invés do que é correto.
NJSR: Qual é o papel da variante popular?
HR: A comunicação. É a variante mais usada, a dominante. As pessoas a usam no cotidiano, entre a família, com os amigos nos momentos sociais. Como qualquer outra linguagem a função é a comunicação.
NJSR: A educação no Brasil é de qualidade?
HR: Ainda não, falta muito. Nós tivemos muito tempo de descaso. E a sociedade paga um altíssimo preço por esse descaso, da sociedade em geral, com a escola, o salário do professor, tudo. E não sei quando é que vamos ter uma educação realmente de qualidade, essa que a gente sonha. E fica um discurso hipócrita porque uma parcela da população que se aloja em nichos privados e não contribuiu pra valorizar a educação pública, é que fala que a educação está um caos, fica alardeando e colocando a culpa em professor, chamando-o de preguiçoso.